Júlia começava mais uma jornada quando observou seu rosto refletido na janela do ônibus.
Ficou alguns momentos observando e pensou: Quando realmente parou de se importar?
Estava sentindo frio e, por isso usava um agasalho que parecia pertencer à outra pessoa, mas ela não se importava, aliás, pouco se importava com qualquer detalhe em sua aparência.
Por um segundo Júlia tentou reverter a linha do tempo até o momento em que seu mundo não significou mais nada.
Uma enorme tristeza invadiu o seu pensamento e Júlia pensou que tudo poderia estar relacionado a algum fato triste ou que tenha lhe causado algum tipo de trauma e começou a se lembrar de acontecimentos tristes ou que pudessem ter lhe marcado dessa forma.
A primeira coisa que lembrou foi a morte de seu pai. Lembrou com todos os detalhes o seu atropelamento na esquina de sua casa, quando um caminhão passou o sinal fechado.
Logo em seguida lembrou-se dos momentos felizes ao lado de seu pai e sorriu.
Com certeza ficava triste ao lembrar-se de seu pai, mas tinha tantos momentos felizes ao lado dele que certamente não fora sua morte que a deixara sem motivação, até porque depois de sua morte, lembra-se de se arrumar, sair, viver!
Ah! Viver!
Essa simples palavra tem um sentindo mais amplo do que costumamos usar.
Viver seria estar em harmonia ou em sintonia com tudo que nos cerca, mas isso é humanamente impossível!
Então, passamos a vida perseguindo algo que sabemos que jamais iremos conseguir e, portanto, formamos uma legião de infelizes.
Júlia se lembrou da doença de sua mãe e como fora difícil estar com ela até os últimos dias de sua vida...
Mas isso não a impediu de lembrá-la das tardes na pracinha e de como a mãe empurrava a sua balança e de como segurava a sua mão com força quando iam atravessar uma rua...
Mais uma vez sorria...
O ônibus chega ao ponto em que Júlia deve descer para uma nova jornada de trabalho e seus pensamentos se desviam para uma nova indagação: Júlia se perguntava por que continuava nesse emprego, já que mal dava para pagar a diarista que trabalhava em sua casa, mas enfim...
Júlia entra e vai direto ao vestiário colocar o seu uniforme. Aliás, achava uniforme uma coisa muito confortável, desde os tempos de colégio, pois deixava todos iguais, pelo menos era o que pensava até hoje, pois hoje notou que, apesar do uniforme, não era igual às outras mulheres da loja.
Prestou atenção em cada mulher que trabalhava naquele local e todas pareciam mais femininas que ela. Até a menina com luvas amarelas que limpava o banheiro era mais mulher do que ela!
Passou o dia conferindo e carimbando notas e pensando em uma maneira de se reinventar!
Se reinventar? Não! Ela só queria ser ela mesma, pois hoje e apenas hoje não se reconheceu.
Estava decidida: Amanhã ia a um salão e faria uma mudança total em seu visual!
Como todas as sextas-feiras desse “ano maldito”, estava chovendo.
Pensava excitada na “grande transformação” que faria amanhã quando, novamente, viu a sua imagem refletida. Dessa vez no vidro embaçado do ônibus.
Ajeitou os fones do seu MP4 no ouvido e continuou olhando como se a imagem fosse lhe revelar...
Chegou a cochilar e sonhar com o Freddy Kruegger dizendo que a resposta estava nela mesma.
Júlia, que sempre teve medo do filme “A hora do pesadelo”, achou que aquilo era algum tipo de mensagem.
Despertou num salto e recomeçou a relembrar sua vida para “tentar se livrar da maldição”.
Lembrou-se de se sentir triste pela infertilidade do marido e pela “burrocracia” para adotar uma criança.
Isso a magoou, mas... Tinha esperanças...
Chegou a casa e agiu como sempre: programada!
No sábado, ao invés de se sentir cansada, acordou mais cedo e fez o que deveria fazer horas mais tarde e foi mudar seu visual!
Quando chegou ao salão, já tinha feito tudo o que era esperado para um sábado.
Passou horas se olhando e pensando no que queria mudar na sua aparência, mas sentia-se desanimada, como se fosse mais confortável ficar no “anonimato”, como se não quisesse chamar a atenção.
Quando chegou a sua vez de ser atendida, desistiu e voltou para casa mais desanimada do que antes.
Mal chegou em casa e já começou a lavar um pilha de louça na pia.
Fez um enorme “balde” de pipocas e sentou no sofá para “jiboiar” e não prestar a atenção na programação da TV aberta.
Passou o dia assim, como se estivesse doente, mas apenas o desânimo de sempre tomava conta de tudo e a impedia de seguir em frente.
Já tinha chegado há horas e seu marido nem tinha notado a sua presença.
Talvez fosse isso que a incomodasse tanto: Passar despercebida!
Mas como mudar essa situação confortável?
No domingo Júlia foi ao mercadinho da esquina, comprou um garrafão de vinho e começou a se embebedar logo depois do almoço. Antes do anoitecer já estava dormindo no sofá.
Na segunda-feira, seu chefe a chamou no escritório logo assim que chegou para informar que seria promovida e que teria que treinar uma nova funcionária para a sua função.
A euforia de ser promovida tinha sido destruída pela obrigação de socializar com alguém desconhecido.
Júlia era falante, comunicativa, mas teria que conviver com alguém. Provavelmente teria que conversar mais do que instruir sobre o trabalho e isso era muito complicado para ela.
Júlia conheceu sua tutelada e a achou extremamente bonita, apesar do uniforme. Começou a ensiná-la como conferir o estoque e dar o “confere” nas notas com o carimbo.
Ângela anotava tudo em um caderninho e observava cada movimento de Júlia.
Nas semanas que se passaram Júlia se sentia poderosa, quase uma deusa, uma pessoa que detinha informações, poder...
Na última sexta-feira de treinamento de Ângela, quando ela se sentia confortável para exercer a função, Ângela resolveu convidar Júlia para comemorar em uma pizzaria perto da firma.
Júlia tentou recusar, mas Ângela não aceitou nenhuma desculpa como recusa.
Pediram dois chopes, uma pizza média cortada à francesa e começaram a conversar – coisa que Júlia temia muito.
- Por que você não tem vaidade alguma? – pergunta Ângela.
Júlia engole um gole enorme de bebida e responde:
- Quem foi que te disse isso?
- Ninguém, basta olhar para você. Passei semanas com você e sempre estava do mesmo jeito.
- Os anos pesam, a vida passa.
- Não acredito nisso! Você é mais nova que minha sogra que fez um implante de silicone nos seios e diz que ainda tem muito que viver, embora isso deixe meu esposo sem graça.
Júlia olha em volta e percebe muitos olhares masculinos para a mesa das duas e se sente desconfortável.
- Acho que é melhor irmos embora, meu marido pode estranhar a demora – disfarça Júlia, para não pensar sobre a pergunta da amiga.
Júlia chega em casa e encontra o marido dormindo, sem nem mesmo notar ou se preocupar com sua demora.
Liga o computador e vê o histórico dos sites visitados e percebe que “seu amado” esteve deveras ocupado com mulheres mais interessantes.
Júlia nem se importa mais.
Aliás, nada mais importa.
Na segunda-feira, Júlia assume o cargo de compradora da loja.
Era uns dos cargos mais importantes.
Agora tinha que lidar com bajuladores, pessoas venais e outros tipos insuportáveis, mas ela era uma rocha, uma pessoa confiável, incorruptível, tinha valor!
Só tinha uma coisa que Júlia não conseguia lidar: A amizade que Ângela tinha por ela.
Ângela a procurava no almoço e em qualquer hora vaga que tivesse.
A convidava para festas, chopes ou qualquer coisa!
Júlia gentilmente arrumava uma desculpa para não participar do mundo de Ângela.
Os dias foram se passando e final do ano chegando e pressão sobre Júlia foi maior do que ela poderia agüentar e, enquanto atendia um vendedor, Júlia desmaiou.
A empresa mantinha um plano de assistência ao empregado, uma ambulância foi chamada e Ângela acompanhou Júlia até o hospital e não a deixou só em nenhum instante – abandou suas funções para fazer isso, quando mais ninguém queria.
Uma noite no hospital e uma triste revelação: Júlia estava condenada!
Seus dias estavam contados: podiam ser dias, horas, meses ou anos, mas era o fim!
Ângela, que dissera ser irmã de Júlia, sabia disso, mas não conseguira falar com ninguém da verdadeira família dela e não achava meios de transmitir tal informação.
Pediu uma semana de licença para ficar com Júlia no hospital e também para garantir que ninguém lhe contaria “a novidade”. Todos os dias perguntava ao médico que tratava da amiga se as chances dela não tinham aumentado, mas as notícias eram as piores possíveis.
Enquanto estava no hospital com Júlia, Ângela tentava animá-la, mas parece que a doença pegou realmente Júlia com todas as suas forças.
No último dia, Ângela tinha decidido contar a Júlia sobre sua doença, entretanto, percebeu que a amiga era depressiva e que isso poderia se tornar mais um transtorno em sua vida.
Mas o que fazer?
Júlia certamente precisaria de acompanhamento médico e a “sua farsa” não podia durar para sempre.
Ao chegarem à casa de Júlia, Ângela decidiu contar-lhe sobre a sua doença e sobre o seu pouco tempo de vida.
Júlia parecia já esperar por algo desse tipo. Não que levasse uma vida desregrada, mas como se soubesse que esse seria o seu fim.
Ângela foi para casa num desanimo de dar dó.
Na segunda-feira, ao chegar ao trabalho, teve a maior surpresa ao saber que Júlia voltara ao trabalho e surpresa ainda maior ao reencontrá-la: Júlia estava com um lindo corte de cabelo, pintou-os de vermelho, tinhas as unhas dos pés e das mãos cuidadosamente feitas e estava bem maquiada, como se isso fosse sempre normal.
Ângela foi conversar com a amiga que a convidou para beber algo depois do trabalho.
Júlia estava mesmo radiante!
Era como se a notícia do fim de seu eterno sofrimento a tivesse deixado mais tranqüila.
Foram 3 meses em que Júlia fumou, bebeu, riu e se divertiu mais que em toda a sua miserável vida.